Sobre a consciência do self

Quando acordamos de manhã, o que tomamos como garantido?

Se comparar a minha situação com a juventude da minha avó, aperceber-me-ia de vários luxos materiais. Quando acordo tenho acesso a uma casa de banho com água quente. Quando acordo não passo fome. Quando acordo não me dói o corpo do trabalho no campo e tenho sapatos para calçar. Mil e um luxos que tomo como garantidos, de natureza maioritariamente material.

Eu desafio-vos, porém, a dedicar a vossa atenção a um luxo de natureza diferente. Todas as noites, quando nos deitamos, partimos do princípio de que iremos acordar no dia seguinte. Que quando acordarmos voltaremos a estar conscientes. Indo um passo além, todos os dias partimos do princípio de que iremos experienciar o mundo através de um alguém – nós próprios. Através do nosso self. EU irei levantar-me amanhã e EU sentirei a necessidade de ir à casa de banho. EU vou preparar o pequeno-almoço, porque EU vou sentir fome.

Infelizmente para cerca de 2% da população, a sua manhã não decorrerá assim. Indivíduos que sofrem da Perturbação de Despersonalização e Desrealização (PDD) podem experienciar sentimentos de unreality ou de detachment em relação ao self e/ou ao ambiente. Por outras palavras, a sensação de observar, enquanto terceira pessoa, os seus pensamentos, sentimentos, sensações, corpo ou ações.

“I feel some degree of ‘out of it’ all of the time, but it has almost become to be what I am used to now. I get times when I feel very out of my body. I am looking at people, know who they are, but can’t place myself there. I remember events from the past, but don’t always see ‘me’ there. Even photos of me look different. I don’t like the person I remember being. Looking in the mirror proves difficult as I don’t always recognize the person looking back at me.

Looking at familiar things during a bad episode upsets me a lot. I look at them, but they just don’t seem real, they don’t look the same and they don’t look familiar anymore, even though I know deep down they are, I’m seeing things differently from how I used to, almost like I’m looking at something I know, but it doesn’t feel like I know it anymore. It feels like I’m looking through someone else’s eyes.”

Indivíduos que sofrem desta psicopatologia apresentam grandes dificuldades em descrever o que experienciam, normalmente recorrendo ao uso de metáforas e a expressões “as if”. Apesar de podermos concluir que o reality testing permanece intacto, chegamos também à triste e frustrante conclusão de que a nossa linguagem é insuficiente para descrever estas experiências. Tendo em conta a importância óbvia da verbalização das experiências é importante recorrer a recursos culturais que possam ajudar na articulação. Aqui entra o contributo da fenomenologia, o estudo filosófico da estrutura e experiência da consciência.

Edmund Husserl salienta duas dimensões do nosso corpo: a dimensão objetiva do nosso corpo enquanto objeto físico e a dimensão subjetiva, a experiência de viver o nosso corpo através da perspetiva do eu. Na língua alemã existem duas palavras para “corpo” que integram as duas dimensões referidas, Körper e Leib respetivamente.

Complementarmente, dois processos importantes a distinguir que compreendem a mesma lógica de diferenciação são a capacidade de sobreviver enquanto criatura orgânica e a capacidade de experienciar algo no tempo através de um eu. Duas palavras alemãs adicionais equivalentes ao nosso “viver” e que também integram os conceitos referidos são: Leben e Erleben.

A fenomenologia forjou o conceito de pre-reflective self-consciousness que compreende a nossa awareness tomada como garantida de que o “eu” é o sujeito e não objeto da nossa própria consciência.

Estes conceitos são um framework adequado para descrever a PDD. Indivíduos com esta patologia sofreram uma anomalia na sua pre-reflective selfhood. Deixaram de conseguir oscilar entre as perspetivas objetivas e subjetivas, ou seja, passaram a experienciar o “eu” enquanto objeto da sua própria consciência. Ficaram limitados a apenas leben a sua vida sem a erleben. Deixaram de ter um Leib e passaram a ter somente um Körper.

Ao vasculhar a literatura desta psicopatologia a ausência destes conceitos espetaculares é entristecedora, pois trata-se de uma excelente oportunidade de enriquecer o conhecimento da comunidade científica. A psicologia e psiquiatria mainstream continua cega em relação ao papel da filosofia neste caso. Um exemplo triste da indevida e injusta atitude da sociedade para com a filosofia.

Uma cooperação entre as disciplinas, porém, não seria unilateral. Psicopatologias como a PDD também nos oferecem argumentos entusiasmantes e intrigantes sobre vários debates filosóficos, e.g. a questão do livre arbítrio.

“I talk and the words are just coming out. I don’t feel I have control as to what I’m saying. It’s like auto-pilot has been switched on. My voice doesn’t sound like ‘me’ when it is coming out. Sometimes I wonder how I get through conversations as I don’t feel I am there at all. I can sit looking at my foot or my hand and not feel like they are mine. This can happen when I am writing, my hand is just writing, but I’m not telling it to.”

Será o self uma ilusão? Estaremos todos em auto-piloto apenas convencidos de que controlamos os nossos pensamentos e ações? Perguntas fascinantes para outro dia, outro texto, mas hoje podemos estar gratos, pois acordámos com o nosso eu enquanto sujeito da nossa consciência.

Lucas Lopes Naumann




Citações retiradas de Sierra, M. (2009). Depersonalization: A new look at a neglected syndrome. Cambridge University Press.

https://aeon.co/essays/what-can-depersonalisation-disorder-say-about-the-self

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