Estar sendo

Estava a caminho de casa quando encontrou uma folha de papel no chão. Suja e embrulhada. Nela encontrou um texto de teor profundo.

As mudanças são constantes, algumas recorrentes; outras permanentes; outras desaparecem antes de realmente virem; e outras permanecem mesmo que as tirem. Umas estabelecem meramente um innuendo para o que, possivelmente no futuro, aí vem; outras disfarçam-se como uma e só entravam o que o presente tem. Umas são bem-vindas à primeira; e odiadas à segunda; para serem ignoradas à terceira. Umas são carregadas pela vontade de uma multidão; para outras essas pessoas só respondem com negação. Umas causam medo; outras criam um enredo; ninguém escapa, porque não dá para escapar; discordar é negar o que se está a olhar. Mudanças são muitas, algumas são boas para a nação, mas horríveis para o povo; outras fazem o barulho da pseudo-revolução ecoar de novo. Há ideias de progresso e de transição; de vontade e de união; umas deram paz, outras deram guerra e mais; e uma ou outra deram em reformas míseras locais. Nada muda a mudança, mas a mudança muda tudo.[1]

Olhou de volta, sentou-se num banco e escreveu no outro lado do papel.

A mudança não existe. Tudo o que existe são eventos, momentâneos, minusculamente pequenos. O tempo é um mero aglomerado destes minúsculos momentos. Encostar a caneta ao papel foi um evento, prosseguida por uma série de outros eventos que me trouxeram aqui, ao presente, a este momentâneo evento. Escrevendo.

Coçou o nariz.

Eventos são entidades cujas partes ocorrem todas num momento só; nenhuma das suas partes ocorre em momentos diferentes. Para existir mudança é necessário um evento mudar ou a série de eventos mudar. Mas o passado está escrito, por isso o segundo é impossível. Resta o evento para reivindicar a mudança. Só que para o evento mudar. seria necessário este ser duma forma a certo momento e doutra forma noutro. Para a minha nascença mudar teria de ser duma forma em 1998 e doutra forma em 2018. Mas o evento de ter nascido não muda, é. Um evento é por definição imutável. Assim, nem eventos nem as suas séries podem mudar. E uma vez que estes dois constituem o mundo, nada muda. A mudança não existe.

Suspirou, o vento soprava-lhe na cara.

Mudança pressupõe o tempo, mas o tempo é contraditório. Divide o mundo em eventos imutáveis, mas necessita na sua própria existência espaço para mudança. Agora que regurgitei o trabalho doutro filósofo, deixa-me exprimir aquilo que verdadeiramente penso. O tempo provoca mudança, mas torna-a um paradoxo. Porém a mudança é inegável. Olha como escrevo esta frase e a tua leitura dela transforma o teu estado de mente. E se temos de escolher entre a mudança e o tempo, escolhe-nos a primeira a nós. Porque ao escolhermos deliberar sobre esta escolha, estamos nós a mudar. Aquilo a que chamamos tempo não pode existir, portanto.

As folhas do outono voavam. A paisagem transmutava-se.

Se mudança é o tecido do universo, nada é, tudo está. Estou escrevendo, estou cansado, estou emocionado. Porém certas relações mudam. Quem diz estar pequeno em comparação com o mundo? Eu sou pequeno no mundo. Mas se nada é e tudo está, não posso ser pequeno. Logo, ou a minha perspetiva é ilusória, ou o meu raciocínio erróneo. Mas erros não encontro. E enquanto ninguém os encontrar, suporei uma ilusão. Mas supor isto não consigo. Que tudo está e não é. É me inapreensível. Contento-me com a minha incompreensão. Do mundo e do eu. Talvez esteja errado dizer que sou. Talvez seja linguística a barreira. Reside para além dos limites da língua, a apreensão da realidade. Mas que sou é a certeza do meu ser. Esta certeza não trairei.

O papel quase cheio de caneta, a caneta dançando no papel.

Mudança é o tecido do universo. Quem somos nós para apromiarmo-nos dela? Somos meras células num organismo. Se uma célula eucariótica mudar dentro de mim, eu não mudo. Não no sentido do ‘Eu’. Mas eu mudei, as minhas partes mudaram. Portanto no sentido que interessa, na realidade e não na minha perceção, eu mudei. Embora esta mudança pouco relevo tenha. Da mesma forma, eu mudo e mudamos nós como sociedade. Pequenas células num gigante universo. A nossa mudança afeta o mundo de pouca forma tal, que insignificantes se tornam tantos dos nossos desejos.

A sua mão tremia. Os olhos lacrimejavam.

Mas não todos. Desejos fúteis são os que estão. Significantes os que são. A vaidade está e a cobiça também. Mas nas transmutantes relações humanas certas coisas são. Tal como sou pequeno, a vontade de ver justiça é. A vontade de ser-se feliz é. A vontade de amar é. E embora o intelecto me diga que tudo tem de estar, o coração sabe o que é. O meu ofício é ouvir. O meu propósito: estar sendo. Nunca ser estando.

Levantou-se e caminhou para casa. No sofá adormecera aquilo que lhe é. A mulher e a filha repousavam no conforto. Conforto que está no sofá, mas é no amor.

[1] Texto de Lúcio Hanenberg

Dário Moreira

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