Chamar os Bois pelos Nomes

Exigem-se, para princípio de conversa, duas notas (literais) de Redação.

A primeira dirá que a correspondência entre a imagem e o título não carrega qualquer intenção ofensiva ou o mínimo princípio de insulto – que o deserto inspiracional, de caneta na mão, me leve primeiro a outros lugares que não os da injúria e, em concreto, o de cunhar Marcelo como boi. Diga-se de passagem, porém, que a correspondência não é – pelo contrário – inocente ou ingénua. Eis o momento em que entra a segunda nota.

É que este é um texto sobre Marcelo Rebelo de Sousa. E este é, em simultâneo, um texto sobre os nomes que chamamos a Marcelo Rebelo de Sousa. Mas não será – nem pretende ser, em qualquer extensão – um exercício de defesa de honra ou de ínfima manifestação de apoio ao tão-intitulado Presidente dos Afetos. A verdade, todavia, é que – desculpem-me – Marcelo não é populista. E é um erro atribuir-lhe tal qualificação. 

A definição de populismo é um dos assuntos que maior debate gera no seio da Academia e dá corpo àquilo a que Paul Taggart chamou chameleon-like ability. Isaiah Berlin, numa metáfora brilhantemente elaborada, revela-nos esta dificuldade de outro modo, com o seu Cinderella Complex: “There exists a shoe – the word populism – for which somewhere exists a foot. There are all kinds of feet which it nearly fits, but we must not be trapped by these nearly fitting feet. The prince is always wandering about with the shoe; and somewhere, we feel sure, there awaits a limb called pure populism”.

De qualquer modo, num campo de vivo debate, existem três correntes, ilustrativas de três diferentes perspetivas: a ideacional, a política-estratégica e a sociocultural. Entre estas, destacada e indubitavelmente, a corrente ideacional é a que reúne maior consenso. Não será por acaso, aliás, que Matthjis Rooduijn, num artigo de 2013, ao analisar 12 potenciais características de populismo – comum e frequentemente mencionadas na literatura (divididas em Ideias, Estilo e Comunicação) – chega a um núcleo comum que inclui quatro elementos pertencentes ao domínio ideacional: o (1) povo-centrismo, o (2) anti-elitismo, a (3) homogeneidade do povo e a  (4) proclamação de uma crise.

Neste preciso domínio, ainda assim (e incluindo os elementos apontados por Rooduijn), prevalece a definição (seminal) de Cas Mudde e Cristòbal Rovira Kaltwasser: o populismo enquanto ideologia de baixa densidade que considera a sociedade enquanto dividida em dois grupos homogéneos e antagónicos, o povo puro vs. a elite corrupa, e defende que a política deve ser uma expressão da vontade geral do povo. São ideologias, portanto, com necessidade de se agregar a outras maiores (e.g. nacionalismo ou socialismo) que hospedem a dualidade que apregoam. Pela sua flexibilidade ideológica, são, também, ideologias incapazes de se apresentar como um sistema de ideias, convicções e atitudes que defendam uma determinada estrutura de sociedade e apresentam um caráter sobretudo moralístico, afirmando representar o povo oprimido e negligenciado.

A mero título de exemplo, com maiores ou menores diferenças – sem que percamos, no entanto, o referencial nuclear que Rooduijn apresenta -. outros autores seguem estes passos. Ernesto Laclau, por exemplo, apresenta um conceito de populismo em que o apresenta como lógica política. O seu estudo remete-nos para uma análise que integra discursos ou ações nesta lógica, assim sustentando a criação de uma identidade popular – o povo – na oposição face à elite, baseada em condições históricas que a justifiquem (clarificando a distinção entre povo e elite). Marco Tarchi, por outro lado, sugere o populismo enquanto forma mentis, i.e. enquanto mentalidade: focando-se na dimensão psicológica do populismo, a definição de Tarchi prende-se (essencialmente) com a exaltação das virtudes cívicas do povo, por oposição à elite.

Estes três exemplos (meramente ilustrativos, poupando-nos ao exercício exaustivo e hercúleo de mergulhar neste oceano conceptual) pretendem, tão somente, alertar para o perigo de esvaziar um conceito que, na sua própria génese, suscita longos e difíceis debates. Marcelo não será, por isso, um populista; será, isso sim, um popular sedento de popularidade, no limbo constitucional entre a maximização (ao limite) do poder simbólico que lhe cabe e a transgressão do espaço de ação que lhe cabe. O seu discurso, para lá de selfies, abraços e afetos, de um modo geral, não opõe o povo à elite – aos olhos de um verdadeiro populista, no sentido para o qual apontam as definições, o próprio Marcelo seria representativo dessa elite que se arrasta entre os lugares da Assembleia da República, Conselho de Ministros ou Palácio de Belém (sem contar com as incontáveis secretarias, assessorias ou demais cargos pretensamente importantes).

Chamar populista a Marcelo é, por isso, uma apropriação simplista, incorreta e, sobretudo, perigosa deste termo, porquanto o relativiza. Tratar-se-ia de o juntar a tantos outros atores e partidos que promovem uma visão moral e monista da sociedade, gerando e acentuando a diferença entre os monómios nós e eles, baseando-se em promessas demagógicas e que, em tantos casos, atentam contra os Direitos Humanos (Órban ou Salvini chegam?).

O populismo é uma sapato que, recorrendo à imagem de Berlin, ainda procura a sua Cinderela. Poderemos nunca a encontrar, sim – mas escusamos de forçar este sapato a todas Cinderelas que por aí surjam.

João Gaio e Silva

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